Stephane Bebel, técnica de futebol, sonha em comandar o Santos (Crédito: Guilherme Lesnok)

Medalhista de Bronze Campeonato Mundial Sub-20, na Rússia, em 2006. Campeã do Sul-Americano Sub-20 em 2008. Com a Seleção principal, campeã Sul-Americana do Equador em 2010 e Bicampeã Torneio Internacional de São Paulo 2009/2010. Individualmente, Bola de Prata da FPF e melhor jogadora FPF em 2006 e 2007. Além disso passagens por Portuguesa, Corinthians, São José, Avaí Kindermann e Santos, times tradicionais do futebol feminino.

Esse é a história de Stephane Gomes dos Santos, a popular Bebel, ex-jogadora de futebol que pendurou as chuteiras cedo, aos 32 anos, por problemas no joelho. Quem olha esse currículo recheado de conquistas não imagina que o jogo mais difícil de sua vida não aconteceu dentro das quatro linhas.

Stephane Bebel passou pelo Santos em duas oportunidades (Crédito: Pedro Ernesto Guerra Azevedo/Santos FC)

Bebel tem 35 anos e vive uma vida humilde no bairro de Vila Silva, Zona Leste da cidade de São Paulo. Anos atrás, batalhou contra o vício em crack e chegou a morar na rua. Em entrevista exclusiva ao DIÁRIO DO PEIXE, ela contou sua história

“Foi um período difícil da minha vida e carreira, onde além de superar muitas coisas, o vício em si, qualquer um, droga, bebida, celular… qualquer coisa que você faça e atrapalhe sua vida social e amorosa, não faz bem. Foi uma época em que eu estava bem, mas outras coisas na minha vida não estavam”, disse.

“Eu fiquei morando na rua, literalmente. Eu tinha família, mas eu não achava justo com meus pais. O dependente químico vai definhando aos poucos. Eu já tinha dado desgosto de ter envolvido com drogas, abandonado o futebol. Então, eu preferi que eles não me vissem naquela situação. Quando eu tive meu despertar espiritual, eu voltei para casa deles. Isso foi em uma segunda-feira de madrugada, eu tinha 22 anos”, disse a ex-meia.

Bebel (primeira da esquerda para direita) em conquista pela Seleção ao lado de craques como Cristiane (Crédito: Reprodução)

Tentativa de estupro

Bebel passou um tempo na comunidade do Pau Queimado, próximo ao Parque São Jorge, local onde cresceu e estudou. Em um dos episódios nas ruas, sofreu uma tentativa de estupro.

“Eu passei por muitas situações. Uma vez, um cara encostou um revólver na minha barriga e falou: ‘Hoje você vai ser minha viva ou morta’. Nessa mesma hora, um outro rapaz passava do outro lado da rua, que me conhecia, e gritou ‘E aí, Bebel, que fita é essa?’. Na hora que ele tirou a arma, eu saí correndo. Se eu tivesse ficado, eu não sei… é complicado. Hoje eu consegui superar”, explica.

Após esse momento, Bebel ficou decidida em dar a volta por cima e, após um “estalo espiritual”, como ela conta, decidiu voltar para casa dos pais e recomeçar sua vida. A luta, porém, ainda seria árdua.

“Bom, foi em um momento em que eu escutava vozes e estava entrando na esquizofrenia. Eu já vinha pensando há dias em uma forma de sair daquela situação. Eu fiquei um ano sem sair de casa, foi um processo doloroso. Eu renasci, na verdade. Tanto fisicamente quanto socialmente. A gente se fecha, não quer sair de casa por medo de voltar usar droga. Eu estava disposta a pagar o preço que fosse para não voltar a usar drogas. Os três primeiros meses foram os piores, eu pensei que ia morrer. Muita dor em articulação, vomitava bílis, tinha ilusões de ótica, via bichos andando. Então, tive que me apegar muito em Deus, minha família foi meu pilar, e é até hoje, se eles não abrissem as portas aquele dia, eu não sei o que seria. Sou grata aos meus pais, provo para eles todos os dias. Estou sem usar há 11 anos”, comenta.

Bebel comanda equipe em comunidade em São Paulo e São Caetano (Crédito: Guilherme Lesnok)

Volta para o futebol

Com o vício controlado, Bebel foi convidada para disputar partidas da várzea do interior de São Paulo. Por R$ 50, uma atleta multicampeã no futebol feminino voltou a jogar. Mas não demorou muito para o retorno ao futebol profissional e, em seguida, uma nova passagem pelo Santos.

“Uma amiga minha ficou sabendo que eu tinha parado de jogar, e me chamou para à várzea do XV de Piracicaba. Eu ganhava R$ 50 por jogo. Era mais para eu sair de casa. Com isso, os dirigentes do XV souberam que eu estava lá e me convidaram para jogar o Campeonato Paulista. Como na época eu tinha engordado, fiquei parada, eu falei isso para eles. Mas, quero. Se me derem essa oportunidade. Eu não tenho vergonha de falar, eu saí de São Paulo para Piracicaba com R$ 15 no bolso. Então eu me apeguei nesta oportunidade, treinava três vezes no dia para perder peso, retomar a forma física, recuperar parte técnica. Joguei o Paulista por eles, ficamos entre os quatro, fomos campeãs dos Jogos Abertos contra o São José, que tinha Fran, Rosana… E de lá, foi degrau por degrau. Voltei para o Foz Cataratas. Falo que Deus fez minha história certinha: todo time que passei e não pude dar meu melhor, pude retornar. Quando voltei para São Paulo, fui para a Portuguesa, com o Prisco Palumbo, no qual tenho enorme gratidão. Da Portuguesa, fui para o São José, e nesse intervalo quem me ajudou foi a professora Emily Lima. Depois disso, fui para o Audax, assinei por dois anos, e depois para o Santos”, disse Bebel.

Stephane, durante sua passagem pela Seleção Brasileira (Crédito: Reprodução)

Aposentadoria nos campos, mas não do futebol

A vida de uma atleta do futebol feminino quando se aposenta é bem diferente de jogadores do masculino. Em muitos casos, cabe ao jogador decidir qual o rumo tomará em sua vida. No futebol feminino, segundo Bebel, a situação não é bem assim: ainda precisa trabalhar para sobreviver.

“Com certeza . Trabalho muito mais pela questão financeira, do que pela necessidade de deslocamento. Se eu parar com o futebol, não tenho do que viver. Hoje eu dou aula em São Caetano, na Inter Academy e em projeto social na comunidade do Esmaga Sapo. Tenho uma empresa de personal soccer, onde atendo atletas de alto rendimento e de iniciação”, disse Bebel.

“O que as meninas puderem fazer para capacitar em questão de formação, de conhecimento, façam. Quando parar de jogar, não sair da modalidade para fazer com que a experiência dela ajude nessa alavancagem. Eu imagino que daqui 10, 15 anos, nossa situação dentro do nossos país estará bem melhor. Eu conheço muitas jogadoras que ficaram pelo caminho porque não tinham apoio. Elas precisam trabalhar, estudar, ter dinheiro… torcemos muito para que as meninas que param de jogar futebol, fiquem no meio”, completa.

E quais os sonhos de Bebel?

Com tanta história para contar como atleta, Bebel pretende construir outro legado: técnica de futebol. Além do profissional, ela pensa em projetos para categorias de base e, como faz no projeto social de comunidade do Esmaga Sapo, tenta auxiliar os mais jovens.

“Em médio ou longo prazo, eu quero trabalhar com formação, tanto masculino quanto feminino. É uma área que está carente de profissionais capacitados para tomar conta da nossa base e formar atletas e ser humano. Antes do atleta tem que vir ser humano. Eu acredito que á médio prazo, é o que eu quero. A longo prazo, depende da escolhas e oportunidades, tomar conta de um time de Série A, tanto no feminino quanto no masculino, disputar Mundial, Olímpiadas. O futebol me proporcionou muitas coisas legais como atleta, e eu quero buscar como treinadora, começando por baixo, aprendendo muito, gestão de pessoas”, comenta.

“É uma aprendizagem. Você vai subindo degrau por degrau. É igual uma atleta, você não começa direto como profissional, passa por formação, base, Sub, e dentro você vai pegando situações, vai aprendendo a líder e colocando em prática em outras oportunidades. O Palmeiras faz isso muito legal. Ele chega no Sub-15, no Sub-17 com uma mentalidade, e não é à toa que ganham tudo, para quando chegar ao profissional, ele não se deslumbrar, e também não sentir muito a pressão. Ele está habituado a situação que vai encontrar no campo”, afirma Bebel.

Bebel, Rodolfo Cetertick, ex-presidente da Juventus e a técnica Emily Lima, ex-Santos e Seleção Brasileira (Crédito: Divulgação/Juventus)

A luta contra o preconceito

O futebol feminino está na internet, nos estádios, na televisão e na sociedade em geral. Mas, em paralelo, o preconceito também é grande.

“Para mulher, em qualquer setor em que o ambiente é masculino, nossa país ainda é muito machista, infelizmente, a barreira maior é a do preconceito por ser mulher, não é nem a capacidade. Não é ‘ah, ela não é capaz’, e sim ‘ela não vai entrar porque é mulher’. Eu acredito que, com o tempo, com as meninas indo atrás de conhecimento e formação, essas barreiras vão sendo quebradas. A mulher, o sexo em si, não é importante, e sim a capacidade de tocar um time lá dentro. Eu acredito que, com essa alavancagem que a mulher empoderada nesse século está tendo, acho que barreiras podem ser quebradas”, explica.

“Eu acho que toda mulher é um pouco feminista. Homem tem suas vantagens, e a mulher está buscando o espaço dela, sem pisar em ninguém, sem menosprezar o trabalho do homem. Juntos podem fazer trabalhos extraordinários. A mulher entrando no esporte ela acrescenta. O cuidado, a exigência. A mulher é mais perfeccionista que o homem. Mulher vem para acrescentar”, completa.

Bebel, durante sua última passagem pelo Santos (Crédito: Pedro Ernesto Guerra Azevedo/Santos FC)

O amor pelo Santos e uma possível volta

Bebel fez parte de anos históricos do futebol feminino do Santos e chegou atá a Seleção Brasileira. Sua passagem foi interrompida por conta do vício, mas pôde ser finalizada no ano de 2019.

“Eu tenho um carinho muito grande pelo Santos, uma gratidão imensa. A minha primeira passagem foi em um dos times mais vitoriosos, em 2010, na época em que estava na Seleção com Marta, Cristiane e Pellegrino. E foi um ano difícil para mim no final de 2010, começo de 2011, quando tive problemas com drogas, fiquei afastada. Mas graças a Deus me recuperei, voltei a jogar em 2013 e retornar ao Santos em 2019. Foi para coroar a volta por cima. Eu tenho uma gratidão imensa, um amor que vou carregar para o resto da minha vida”, disse.

Com o sonho de atuar em equipe de ponta no futebol feminino, Stephanie Bebel não descarta assumir o Santos no futuro, quem sabe em um primeiro passo nas categorias de base.

“Sim, se tiver a oportunidade, com certeza seria um clube que eu gostaria muito de trabalhar. Tenho uma gratidão imensa pelo Santos, tudo que eu passei por lá, tudo que ganhei e vivenciei. Quero me capacitar ao máximo e ajuda eles também. Eu toparia (comandar base). Como eu disse, pretendo trabalhar com base, e quero mostrar tudo que me ajudou no futebol. Se aparecer a oportunidade… Eu sonho sim. Sempre queremos trabalhar em time de camisa”, finaliza Bebel.

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