“Herdeiro de Victor Ferraz”, Daniel Guedes conta sua história ao Diário do Peixe (Crédito: Ivan Storti/Santos FC)

Por Daniel Guedes, especial para o Dário do Peixe

Eu venho de uma família muito humilde do interior de São Paulo. Meu pai faleceu enquanto eu ainda era criança e acabou deixando umas dívidas para a minha mãe. A gente morava em uma casa alugada em João Ramalho, com meus outros seis irmãos. Minha mãe trabalhava de faxineira para poder pagar as contas. Nessa época, o dia 25 de dezembro da família Guedes era apenas um dia como qualquer outro. Dormíamos às 21h para acordar cedo e trabalhar no dia seguinte.

Quando chega essa época do ano eu sempre me lembro de tudo que passei. Foi nessa época que tudo aconteceu, que as coisas mudaram na minha vida. Sempre sonhei em passar um natal como jogador de futebol de sucesso e poder dar para a minha família o que eu via as outras pessoas fazerem: uma árvore de natal, uma festa, uma ceia… Meu sonho era dar um Natal para a minha família.

Desde muito pequeno eu gostava de jogar futebol. Não como as outras crianças, comigo eram três turnos de futebol: manhã, tarde e noite, na escola, no campo e na quadra. Conversávamos com o treinador da escolinha e ele ia abrir a quadra com os refletores para podermos jogar à noite. Saía do futebol da tarde, no campo, voltava para casa só para jantar e já ia para a quadra.

Meu sonho, claro, era ser jogador de futebol, mas não profissional. Era muito para se pensar nessa época. Eu queria mesmo era jogar no futebol amador em João Ramalho. Campeonato forte, estádio cheio, policiamento e “delegação” chegando em ônibus chiques.

Nessa época comecei a ver amigos meus chegando em categorias de base dos clubes da região: Marília, Mirassol, Assisense… Comecei aos oito anos na escolinha e o treinador tinha bom trânsito no Marília por causa de um jogador que ele tinha levado para lá e se destacou muito. Então, quando ele via potencial em alguém, ele levava para o MAC (Marília Atlético Clube).

Quando eu tinha 13 anos, ele me levou para fazer um teste. Eu passei e me pediram para voltar no ano seguinte, pois o alojamento já estava completo. No ano seguinte a diretoria do Marília mudou e o clube começou a entrar em decadência. Quando voltei, pediram para fazer outro teste. Passei novamente e eles iriam selecionar apenas quatro para ficar alojados no clube: eu fui um dos quatro.

Então eu fiquei. Meu salário era uma cesta básica. Pra mim, isso já era top do top. Só isso bastava para eu permanecer porque podia ajudar minha mãe em casa. Era o suficiente. Lá eu sabia que iria comer, em casa não tinha essa certeza. Às vezes, no final de semana não tinha jantar. Também não tinha televisão e eu não tinha celular. Ficava olhando para a parede lá. Quando dava eu pegava o ônibus e voltava para casa.

No entanto, no final desse ano eles pararam de cumprir com o prometido. Foi depois de um jogo contra o São Paulo pelas quartas de final do Campeonato Paulista. A gente perdeu, mas eu fui eleito o melhor do jogo. Eu era o meia-atacante camisa 10 do Marília, adorava a cidade e o clube. Mas então eu peguei minhas coisas e fui embora para trabalhar na minha cidade e ajudar minha mãe.

O técnico me ligava sempre pedindo para voltar, dizendo que eu tinha potencial e tinha gente de olho em mim, mas pra mim aquilo tinha sido o suficiente. Eu tenho como prioridade a minha família e eu não podia deixar eles naquelas condições sem poder ajudar.

Então consegui um emprego como servente de pedreiro. Quando falo isso, pensam que é brincadeira, mas não é. Minha mãe trabalhava na casa de uma moça que fazia coxinha nessa época e o marido dela era pedreiro famoso na cidade. Quando fui pedir serviço pra ele, ele riu da minha cara. “Você não é jogador?”

Respondi que tentei, mas não deu certo. No dia seguinte já estava trabalhando. Ia das sete da manhã até a cinco da tarde e, olha, tiro o chapéu pra quem faz isso. Foram só duas semanas trabalhando assim, mas depois de uma eu falei “não vou”. Estava destruído do trabalho. Eu não era apenas servente de pedreiro, eu fazia tudo: pintava, lavava o telhado, carregava cimento…

Nesse dia o cara foi me buscar em casa. Ele gostava de mim. Eu não reclamava e fazia tudo que ele pedia. Quando eu recebia o dinheiro, aproveitava para ir tomar um sorvete com o meu amigo que era irmão daquele jogador que abriu as portas do meu antigo técnico no Marília. Um dia eu falei para ele que estava pensando em voltar a jogar e ele disse que também estava e conhecia um técnico do São Paulo que tinha dito que a gente podia ir para lá.

No dia seguinte eu estou na obra pintando e ele chega dizendo que precisava muito falar comigo. Fala para irmos na casa de uma pessoa e eu o acompanho. Quando chegamos lá, era o treinador do São Paulo que estava passando as férias na cidade na casa de um familiar. Ele perguntou se estávamos dispostos a voltar e pediu nosso telefone para ligar. Já ficamos muitos felizes só isso, mas o melhor estava por vir.

Assim que eu chego em casa o telefone toca. Eu atendo e é ele. “Daniel, eu não quis falar na frente dele para não deixá-lo chateado, mas o diretor do São Paulo quer você lá amanhã mesmo. Ele estava te procurando pelo Brasil inteiro e não tinha notícia. Você sumiu!” Fui dormir servente e acordei jogador.

Esse treinador foi até a minha casa e ligou para o gerente da base do São Paulo. Ele perguntou o que eu precisava para estar lá amanhã e eu disse: “o dinheiro da passagem”. À noite já estava embarcando para a capital.

Cheguei lá com a minha mãe, ele pegou um papel em branco e escreveu: dez mil reais de prêmio para vocês e a partir de hoje ele começa a ganhar mil e quinhentos reais por mês. Eu não acreditava. Foi muito rápido. O treinador só conseguiu me achar porque conversou com esse meu amigo e perguntou do “camisa 10 do Marília”. Só Deus para explicar essas coisas.

No São Paulo eu cheguei no primeiro ano de sub-17 e eles perguntavam: você que é o 10 do Marília? Lá foi difícil, não gostei da minha passagem lá. Eu quase não joguei. Na minha posição tinha muito jogador de seleção de base, considerados promessa e que acabaram não vingando. Faltou oportunidade, mas não reclamo. Se tivesse chance lá, talvez eu não estaria aqui.

Fiquei dois anos lá e acabei dispensado no primeiro ano de sub-20. Voltei para minha cidade e comecei a jogar no time da cidade mesmo, as copinhas que tínhamos na região. Um dia o Betinho, olheiro do Santos, me viu e se interessou. Quando fui dispensado, não demorei para vir para o Peixe.

Cheguei ao Santos com quase 18 anos e gostei de tudo logo de cara. Fiz amizade fácil com os meninos do alojamento e me senti com mais liberdade. No São Paulo não podia usar tal roupa, cabelo, óculos, tênis… Não podia nada. Aqui só precisava jogar futebol mesmo. Quando vim para cá novamente fui conhecido como o “10 do Marília”, porque tinha jogado contra o Santos no Paulista e perdido, mas também havia sido escolhido com o melhor em campo.

O time do Santos era muito bom. Cheguei como meia, mas o time já tinha Bruno Llamas, Pedro Castro, Leandrinho, Lucas Crispim… E comigo chegou no mesmo dia o Léo Cittadini. O time era atual campeão sub-17 e eu sabia que ia ser muito difícil. A equipe tinha ainda Neílton, Victor Andrade… Do goleiro ao reserva sabíamos que iriam subir todos. No time profissional ainda tinha Neymar, Ganso… “Meu deus, onde é que vai sobrar espaço aqui?”, pensei na época.

Continuei treinando. Fiquei um ano sem espaço como meia e começou a faltar lateral. Quando o Claudinei Oliveira, técnico da época, ia montar o time eu ficava na terceira equipe. Então começou a faltar lateral, ainda para o terceiro time. Ele perguntava quem queria fazer lateral e ninguém se pronunciava. Então eu decidi aceitar. Na outra vez que ele perguntou, eu disse que queria. Foi aí que virei lateral. Começou a faltar lateral nos times de cima por estourar a idade, lesão ou até negociação e eu fui subindo.

Em 2013 eu comecei a ficar no banco de reservas como lateral. No final do ano os jogadores da posição estouraram a idade e a vaga caiu no meu colo justamente na Copa São Paulo de Futebol Junior. Na verdade eles gostavam muito do Zeca e do Caju, então era para o Zeca jogar na direita e o Caju na esquerda, mas no dia de começar a competição o Caju se lesionou, então o Zeca foi para a esquerda e eu herdei a vaga na direita. Tanto que nos primeiros jogos eu saio no segundo tempo, o Diogo Vitor faz a esquerda e o Zeca vai para a direita.

Foi o primeiro ano que a Vila Belmiro foi sede da Copinha, então estávamos em casa e o clima era muito bom. Sabíamos que era muito difícil um time ser bicampeão, mas acreditamos e vencemos. No vestiário, então, veio a notícia de que cerca de cinco jogadores teriam a chance de subir ao profissional. Antes da final, no jogo contra o Grêmio Osasco, eu dei uma arrancada e dei o passe para o Stéfano Yuri fazer um gol de letra e depois fiz um gol também. O Oswaldo de Oliveira, técnico do profissional, me elogiou muito, então eu estava esperançoso.

No dia seguinte todo mundo fez um coletivo no time de cima e ficou a promessa de chamar pontualmente as posições que precisassem. No final das contas, subiu todo mundo. Nós treinávamos no time de cima e jogávamos no sub-20. Quando subi tinham Cicinho, Bruno Peres e o recém-chegado Victor Ferraz. Um deles já ficava de fora e eu então… Sabia que teria que esperar muito tempo.

Então o Bruno Peres acabou indo embora, o Cicinho começou a jogar e o Victor Ferraz no banco. No final do ano o Enderson Moreira, técnico da época, me chamou e disse que iria me dar uma oportunidade contra o Botafogo. Foi minha estreia e logo na Vila Belmiro. Joguei bem, mas estava muito nervoso. Pensei “meu Deus do céu, o que eu vou fazer dentro daquele campo?” Quando as coisas foram fluindo e comecei a me soltar, mas tinha medo. Se tivesse a maturidade que tenho hoje, poderia ter ido melhor, mas faz parte. Acabamos rebaixando o Botafogo.

Hoje a convivência com o Ferraz é muito boa. Ele é o capitão da equipe, mas eu dei muito trabalho para ele esse ano e no próximo vou dar mais ainda. Respeito muito ele e sempre falei que meu ciclo se inicia quando o dele terminar. Não tenho problema nenhum com isso. Ele é uma pessoa maravilhosa e somos amigos. Aprendi a me alegrar com aqueles que se alegram e isso é muito difícil nos dias de hoje. Ele vai continuar jogando essa bola aí porque eu vou seguir fazendo com que ele cresça buscando meu espaço nos treinos.

Hoje quando o Ferraz não está ninguém tem dúvidas que quem joga é o Daniel e isso pra mim é ótimo. Tenho certeza que minha hora vai chegar. Sou o herdeiro dele. Quero construir uma história bonita como a dele. Pra eu sair só se for uma proposta boa e todo mundo, até o torcedor, entenda que é boa para o clube. Eu amo o Santos, a cidade e o torcedor que sempre me apoiou. Hoje se disserem pra mim que eu tenho que sair, eu ficaria muito triste. Já tive propostas, mas enquanto meu coração estiver aqui, eu fico.

Sabe que o primeiro jogo da minha mãe foi esse ano. Ela é toda tímida com esse negócio de cidade grande. Shopping, estádio, camarote… Ela prefere ver pela televisão, mas eu convenci ela a vir porque ela estava aqui visitando meu filho. Ela não queria, mas fiz ela ir e ela gostou. A gente que é do interior é assim: não queremos as coisas até conhecer, quando a gente vê que é legal, aí queremos sempre. Quando eu for sair jogando eu vou trazer ela.

Hoje o natal da família Guedes existe. Agora trago a minha mãe para cá e a gente se reúne com a família da minha esposa. Às vezes até passamos em um cruzeiro, mas hoje tem ceia, tem presente, tem árvore de natal… O primeiro foi quando eu já era profissional, em 2016, lá na minha casa no interior, na primeira casa que eu consegui dar para minha mãe. Nós fomos ao mercado, compramos muita coisa, fizemos bolo, leitão, macarronada, churrasco… Chamei meus tios e depois nos jogamos na piscina. Foi o primeiro natal da família Guedes e um dia muito especial.