Capitão santista na ausência de Renato, Victor Ferraz não se vê fora do Santos (Crédito: Ivan Storti/Santos FC)

“Sempre que vamos jogar no Pacaembu, o percurso do ônibus é especial pra mim. Na selva de pedra, que esconde tantas oportunidades, passamos em frente a uma padaria que me chama a atenção. Não por acaso. Uma vez contei pro Renato: foi ali que vivi três anos da minha vida, comendo minha marmita na rua mesmo e esperando o ônibus passar para ir ao treino do São Paulo. O garoto da Paraíba que morava na casa da tia em busca de oportunidades na cidade grande.

Meu pai foi jogador amador e sempre me incentivou. Jogava futsal e nos finais de semana chegava a jogar no campo lá no Botafogo da Paraíba, o Belo, meu time do coração. Um dia um olheiro do Vitória me viu e fez o convite. Com apenas 11 anos mudei para Salvador para morar sozinho. A imagem dos meus pais me deixando lá e indo embora nunca saiu da minha cabeça. Eu era muito novo, não recomendo pra ninguém, mas foi necessário. Não consigo nem contar o tanto de cartas que já escrevi para falar com eles. Na época não tinha celular e o cartão telefônico era muito caro. No alojamento do Vitória apanhei muito dos mais velhos. Pior: era proibido deixar o clube e ir à igreja, meu hobbie desde sempre.

Quando eu era mais novo, era invocado e queria me rebelar, mas não tinha como. A diferença de força pro pessoal do sub-20 era muito grande. Foi quando um olheiro do São Paulo me fez uma proposta: se eu não estivesse feliz lá, estava convidado para jogar no time dele. Eu fui. Na época pensei que me alojaria no São Paulo, mas não existia Cotia ainda e eles guardavam as vagas no clube para as peças-chave do elenco. A gente que é nordestino sempre tem um parente na Capital, e comigo não era diferente. Morei três anos na casa da minha tia, ia pra escola de manhã, ela me levava uma marmita e eu fiz amizade com os vigias pra comer no lugar onde eles comiam: aquela padaria que contei pra vocês.

Se não fizesse isso, não daria tempo de pegar dois ônibus e um metrô pra chegar ao treino do São Paulo. À noite eu ainda jogava futsal e só chegava em casa depois das 22h. Pra pagar essa condução por muito tempo eu fiz mágica. Aprendi com meu primo e aonde íamos nós fazíamos mágica pra arrecadar um dinheiro. Hoje perdi a prática, mas ainda brinco. Tínhamos um truque com cartas que era infalível: eu precisava dele e ele de mim, mas nós escondíamos uma carta no bolso da pessoa que estivesse nos assistindo e a carta misteriosamente aparecia naquele lugar. Foi o jeito que encontramos.

Foram três anos assim. Eu sou muito apegado a minha família, meu irmão é meu melhor amigo e nessa época chegamos a ficar quase um ano sem nos ver. O jeito era mandar cartas. Depois, por um problema político, acabei saindo. Um cara que colocava dinheiro na base queria pôr os jogadores dele e eu acabei dispensado. Passei um ano no Atlético Paranaense e fui para o Náutico. Lá cheguei com certo status. Eles me queriam, eu era capitão da equipe e eles pagavam um apartamento pra eu e mais dois atletas morarmos. Foi lá que sai de segundo volante para a lateral direita por indicação do técnico, o Sérgio China.

Fiquei no Náutico por três anos, entre os 16 e os 19. Lá eu vi muitos jogadores da base subirem ao profissional, mas minha oportunidade não chegava. Nem treinar com o time de cima eu treinava. Uma vez até meu reserva subiu, e eu não. Eu não entendia. Ligava pro meu pai chorando e ele dizia pra eu ter paciência, pois era o plano de Deus. Ele estava certo, eu não tinha maturidade pra subir ainda, mas quando você vive aquilo, você não enxerga.

Chegou então uma oportunidade no Iraty, do Paraná, e eu fui. O contrato era de apenas um ano, mas quando fui assinar eles colocaram um vínculo de cinco anos e eu não vi. Fui bem e depois de um ano quis sair. Comuniquei o presidente e cobrei o combinado, mas ele não quis me liberar. Eu tinha um amigo da Paraíba comigo lá, o Aragonei, que tinha passado pela mesma situação. Então nós decidimos ir embora. Iraty é uma cidade pequena e funciona em torno do clube. Arrumamos as malas e, quando fomos sair, o segurança, que adorava a gente, disse que não poderia permitir a mando do presidente. Fingimos entender e esperamos ele dormir. Então jogamos as malas por cima do portão, escalamos e fugimos correndo. Mas esse não foi o final da história.

Estávamos com as passagens compradas para João Pessoa, mas precisávamos chegar ao aeroporto de Curitiba. Quando fomos ao ponto de táxi, os motoristas informaram que não poderiam levar-nos por mando do presidente. Tentamos todos os taxistas da cidade e ninguém queria fazer a viagem. Quando já tínhamos desistido veio um carro velho pelo meio da rua, paramos ele e abordamos já desanimados. Pra nossa surpresa, ele topou ir. O taxista era de Curitiba e estava indo pra lá após uma corrida até Iraty. Foi Deus que mandou ele.

Entramos no táxi, mas tinha um detalhe: não tínhamos dinheiro para pagar a viagem. Nosso plano era falar isso somente quando estivéssemos já na Capital. Quando nos aproximamos, pedimos para parar no posto para sacar o dinheiro e dávamos um migué dizendo que não estava funcionando. Mentira. Então o motorista disse que nos deixaria no aeroporto para não perdemos o voo e nos passou a conta dele, dizendo que confiava que iríamos depositar depois. Ele foi tão honesto que resolvemos contar a tramoia toda e pedimos perdão. Demoramos, mas depois de muito tempo depositamos o dinheiro pra ele.

Depois o presidente do Iraty foi legal e mandou o passe pra gente. Hoje somos amigos. Fiquei em João Pessoa e acabei, em uma pelada, machucando sério o joelho. O médico disse que rompi parcialmente o ligamento. Fiz fisioterapia pública e era muito precária, mas ele disse que não adiantava e que eu ia ter que operar. Um dia eu acordei e não sentia mais dores no joelho, toquei uma bola, joguei um pouco e nada. Estava recuperado. Até hoje quando mostro os exames da época não acreditam que não operei. Foi um milagre de Deus.

Passei pelo Náutico por um mês, mas não deu certo e fiquei sem clube com quase 20 anos. Então surgiu uma oportunidade em um clube de Porto Alegre, o São José. Viajei pra fazer testes, mas fui reprovado. Mesmo assim fiquei na cidade, porque não tinha dinheiro pra voltar pra João Pessoa. Morei por mais de 40 dias em um colchão no depósito da loja de um amigo. Então o clube precisou de um lateral e ligaram perguntando se eu ainda estava na cidade. Deu certo. Comecei treinando como lateral-esquerdo e me destaquei. Fiz minha estreia profissional contra o Internacional do Nilmar, Taison e D’Alessandro, entrando no intervalo. Lembro que quando vi meu nome na lista dos relacionados liguei pro meu pai e ele chorou ao telefone comigo, não acreditando que eu enfrentaria o Inter.

As condições eram precárias. Nem luz elétrica nós tínhamos. Eu gosto de ler a bíblia e tinha que fazer isso antes do sol cair. Chegava a fazer -1 grau e eu tinha que tomar banho gelado. O clube não tinha as tias da limpeza e eu cansei de ir no Extra quando precisava ir no banheiro porque lá era sem condições. Uma vez meu irmão foi me visitar e chorou quando viu a situação. Disse: “como você mora aqui?”. Eu não deixei meus pais entrarem porque sabia que eles iriam querer me levar de volta, mas era o único clube que me queria e eu precisava aguentar para colher na frente. São coisas que você passa na vida.

No final do ano fui dispensado. Acabei indo pro Águia de Marabá, que ficava a 600km de Belém, no Pará. Se Belém já é longe, imagina Marabá. Tinha que pegar balsa pra chegar, foi difícil, mas foi o lugar que Deus me abençoou. Fiz um grande paraense e fui direto pra Série A, para o Atlético Goianiense. Depois passei pelo Vila Nova-GO, Bragantino e fui para o Coritiba. Tenho 10 Séries A. Cheguei e nunca mais saí.

Fiquei três anos no Coritiba e já tinha sido eleito terceiro melhor lateral da primeira divisão, mas em 2014 perdemos na semifinal pro Maringá e ficou difícil. O gerente de futebol disse que eu poderia procurar outro clube, mas ele não acreditava que eu fosse conseguir um clube maior do que o Coxa. Tive propostas do Goiás e do Sport, os dois pagavam mais que o Santos, sendo que o Sport pagava o triplo. O Santos não estava na disputa. Era sexta-feira e eu tinha que decidir na segunda. No domingo à noite meu empresário me liga falando da proposta do Santos.

Eu já tinha conversado com meu pai das outras propostas, mas ele não tinha sentido paz ainda. Quando chegou o Santos, liguei pra ele e expliquei as condições financeiras, mas sentimos paz e aceitamos. Aqui só me davam um ano de contrato, mas viemos. Cheguei pra ser apenas uma peça de reposição, porque o Cicinho era o titular e tinha o Crystian e o Daniel Guedes subindo. Joguei apenas cinco jogos em 2014, mas no ano seguinte o Cicinho machucou na pré-temporada e eu entrei. Não dei espaço pra ele voltar.

Mesmo assim eu quase sai do Santos no final do ano. Meu contrato vencia em dezembro e já estávamos em outubro disputando final da Copa do Brasil e G-4 do Brasileiro e eles não tinham me procurado. Vários clubes, até os rivais, colocaram muito dinheiro na minha frente, mas eu nunca fui movido por isso. A palavra diz que o dinheiro é a raiz de todos os males. Até renovar esse ano eu não estava nem entre os 20 maiores salários do elenco, e mesmo renovando não estou entre os 10 maiores. Então o Elano ficou sabendo. Ele sempre lutou muito pelo Santos. Não foi nem por mim que ele soube, disseram pra ele que estavam pegando o lateral do Santos e ele ficou indignado. Falou com o Dorival, que também não sabia, e me chamaram em novembro e acertamos a renovação. Eu não queria sair do Santos. Queria fazer história aqui e não pular de galho em galho.

De lá pra cá vivi muitas coisas. Foi muito difícil ver o Ricardo Oliveira e o Braz saírem. Eram meus melhores amigos aqui. Um dia olhei no vestiário e vi que quase todos os caras que eu andava aqui tinham saído. Não só os dois, mas o Robinho, Elano, Lucas Lima… Perdemos jogadores-chave, mas serviu de aprendizado pra mim. A forma que o Ricardo Oliveira liderava, por exemplo, fui pegando um pouco de cada: a alegria do Robinho, a intensidade do Braz, e fui juntando. Peguei o melhor de cada um pra ser uma liderança porque eu queria permanecer mais tempo. Hoje sou capitão da equipe e fiquei em segundo lugar em sete premiações de melhor lateral.

Elano foi o responsável pela permanência de Victor Ferraz no Santos (Crédito: Divulgação/Santos FC)

Considero um grande momento pra mim este ano. Consegui retomar o futebol que deixei cair no segundo semestre do ano passado. Calhou com o nascimento do meu filho, e eu não conseguia dormir direito. Foi confuso. Ao mesmo tempo o melhor momento da minha vida, por causa dele, mas eu não soube administrar muito bem.

Ainda falta um título de expressão pra fechar com chave de ouro. Sei que alguns grandes jogadores passaram aqui e marcaram época sem conquistar títulos, mas eu gostaria de entrar no hall dos que conquistaram. Sei que ganhei dois Paulistas e tem alguns vices campeonatos, mas não é muito valorizado. Um título nacional ou de Libertadores seria a cereja do bolo. Confiava muito que seria esse ano. Estávamos crescendo no momento certo. Não superei ainda a forma como foi, assim como na Copa do Brasil também. Joguei uma bola pro Gabigol e ele é decisivo, dificilmente ele iria errar. Mas tem que ir em frente porque não posso deixar transparecer pro grupo, senão eles iriam sentir.

Hoje eu não me vejo saindo do Santos. Recebi diversas propostas. Não tem como jogar anos no Santos e não receber. Por um momento fiquei próximo de sair, mas adoro a cidade, o torcedor tem um carinho grande por mim. Jogar no Botafogo-PB seria uma realização, mas não sei se vou ter condições físicas de ajudar. Iria me cobrar muito, pois sou um grande torcedor. Até quebrei o celular e acordei meu filho quando saiu o gol [do Botafogo de Ribeirão Preto] no último minuto que fez com que o time não subisse para a Série B. Mas não me vejo saindo do Santos. Vamos ver se vão me querer. Encerrar a carreira aqui é minha grande vontade.”

“Encerrar a carreira aqui é minha grande vontade” (Crédito: Ivan Storti/Santos FC)

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